quinta-feira, 19 de setembro de 2013

E o salário ó (2) - Observação

Não adianta, não importa a quantidade de horas que você levou para se preparar para dar uma aula, sempre há surpresas. O ser humano é imprevisível e você está ali para lidar com vários. Você pode falar sobre o mesmo assunto e discutir o mesmo tópico, mas a reação de cada aluno vai ser única, por isso cada turma é diferente. São essas experiências, pensamentos e histórias variadas que dão cara e ritmo à aula.  É esse mistério, essa incerteza, que me fazem gostar tanto de ensinar, mas também é o que mais me assusta.

Dar aula é como jogar roleta russa. Cada vez que o aluno levanta a mão dar sua opinião ou contar alguma história, você, no fundo no fundo, sente uma pontada de desespero e pede, encarecidamente, para que não seja nada demais e que não interrompa muito a aula. Reza para que aquele cartucho não seja o carregado. E não adianta tentar adivinhar quem irá te tomar a atenção e o tempo , pois é de onde menos se espera que a bala vem. A carinha de anjo ou a personalidade séria apenas maquiam a mente criminosa que há por trás.

Estávamos conversando sobre os tipos de livro preferidos e os livros favoritos de cada um. Uma que gosta de romances e dramas, outra que tem nos mistérios a sua preferência, gente que lê qualquer bom livro, e até mesmo gente que não gosta ou não sabe ler. Foi quando estávamos terminando de falar sobre grandes autores de mistério , que notei o braço apoiado na mesa e o dedo levantado. Não estava apontado para mim, mas podia atirar a qualquer momento:

- Alguma dúvida?
- Não, só queria fazer uma observação. - pensei que ela fosse dar uma de chiquinha.
-Pode dizer, doutora. - ainda dei asa pra essa imaginação.
- É porque eu gostaria de dizer que quero ter uma gata e que o nome dela vai ser Christie.

Eu já tinha dado a observação dela como encerrada e já me preparava para mudar a pergunta quando ela concluiu:

- A gata Christie.

*

É depois de uma dessa que a gente deveria poder pedir a conta e voltar para casa. A única observação que tenho a fazer é que o pior de tudoi foi ter sido engraçado.


quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Tatuagem

Veio ao mundo para pagar pelos seus pecados e estava conformada . Poderia ter chamado tudo aquilo que enfrentou de carma, mas seria apenas um eufemismo. Pensara assim quando era mais nova, que a culpa era dela e que deveria sofrer por ser uma filha ruim. Apanhava porque era isso que merecia, todos os dias. Além disso, preferia ser espancada sem motivos a acreditar que a mãe não tinha capacidade ou condições para criá-la. Esse era o inferno dantesco no qual veio nascer. Apenas quando viu a morte beijar a mãe nos lábios pela última vez, venceu seus demônios.

Viu sua mãe se matar aos poucos durante os seis anos que ficaram juntas. Muitas vezes com a sua ajuda. O prêmio de melhor filha do mundo era dela, quando obedecia e saía para comprar droga, mas dormia com manchas pelo corpo quando brincava na rua até mais tarde. Entretanto, mesmo na sua dicotomia, tinham seus caprichos juntas. Mesmo assim, não foi o suficiente. Era muita dor para pouco sorriso, muita regra para pouco exemplo. Quando ela deu o último suspiro, chorou por ter ficado feliz.

Venceu a roda do destino e contrariou Sartre. Rolou para longe da árvore para mostrar ao mundo que é possível ter um começo difícil e ser diferente. É fato que sentia sim a necessidade de ser protegida, mas não queria por compaixão. Não precisou da piedade de ninguém antes e não seria agora que iria implorar por cuidados. Tornou-se tenaz porque a vida assim a fez e ensinou a ser. Venceria o que quer que fosse.

*

Ali sentada, esperava para tatuar na pele aquilo que a vida já tatuara na carne: 

Veni.
Vidi.
Vici.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

E o salário ó - Jaca

Engana-se quem pensa que dar aula de inglês para níveis avançados é mais difícil. Os níveis básicos são um campo minado cheio de pegadinhas prontas para explodir ao sinal de qualquer movimento brusco. Como toda pessoa que começa algo novo, você não sabe de nada, portanto, o que aparecer já será novidade. Justamente por isso, a moeda mostra os seus dois lados. Ao mesmo tempo que o aluno iniciante se interessa por tudo, eles têm maior sede de conhecimento. E aí, meus caros, não há preparação no mundo que te deixe pronto para o que poderá aparecer. Em algum momento surgirá uma pergunta para a qual você não tem a resposta e aí resta apenas um conselho: se conforme e assuma.

 Apesar do pouco tempo, já era uma turma querida. Era apenas a quinta ou sexta aula que dava para aquela turma, mas já tinha a sensação de estar em casa. O grupo era novo, nível iniciante. Ainda davam os primeiros passos com o inglês, e é justamente aí onde morava o perigo. Percebi tarde demais.

É certo que aluno não é raça de gente e sente um prazer inexplicável em apertar sem abraçar. Também sou aluno e sinto a mesma coisa. Quando o aluno já começa a pergunta rindo, das duas uma, ou é safadeza ou ele acha que você não sabe, tudo só para ter o gosto de rir internamente. Já tive professor que inventou a resposta na hora e só descobri anos mais tarde. Entretanto, dessa vez o erro foi meu.

 O vocabulário da lição trazia algumas frutas,não muitas, as principais. Quando terminei de ensiná-las, avisei que não sabia todas as frutas, mas que eles poderiam perguntar mesmo assim. Uma a uma, respondi cada pergunta deles, até que perguntaram:

- E jaca? - o sorriso largo estampado.

Depois de uma boa gargalhada de desespero, olhei para o aluno e disse que não sabia, mas que iria procurar. Fiquei com aquilo na cabeça e a primeira coisa que fiz quando cheguei em casa foi achar a resposta. Uma semana depois, lá estávamos nós, eu com a resposta na ponta da minha língua e ele com a pergunta na ponta da dele:

- E aí, professor? Achou? - aquele mesmo sorriso que eu esperava apagar.
- Claro! Você acha que eu ia deixar de responder? Jaca é jack fruit. - quem estava rindo agora?
- Mas essa daí é mole ou dura? - o sorriso sem nem mais caber no rosto.

O pior é que pra essa eu tinha a resposta.

sábado, 10 de agosto de 2013

Fuga

O pensamento ia longe enquanto olhava a escuridão pela janela do carro. Escutava as vozes chorosas, mas tentava não prestar muita atenção. Não era com elas que deveria estar preocupado. Pensava no que estava esperando quando chegasse em casa. Era o motivo pelo qual elas choravam e não escaparia facilmente. Não dessa. Não daria tempo nem pra dizer que poderia explicar e que estava tudo bem, ele viria implacável para cima. Nunca apanhara, mas sempre há uma primeira vez.

Há muito tempo as coisas já não estavam bem. Tudo ruía ao redor, mas não quis pedir ajuda. Era adolescente, e adolescente tem dessas ideias mesmo de fugir de casa. Todos imaginaram como seria, arquitetaram um plano, mas poucos tiveram a coragem, pra não dizer estupidez, de sair de casa sem rumo ou dinheiro no bolso. Agora que estava ali sentado, alheio às lágrimas que davam lugar aos sorrisos e novamente viravam lágrimas, pensava no tamanho da idiotice que tinha feito. Seria uma surra Homérica, literalmente.

O tempo parecia se esticar à medida que caminhava em direção à porta. Um insight perpassou a mente naquele momento, era assim que se sentia um condenado à morte. A chave girou duas vezes na porta e o coração três no peito. O medo inundou os pulmões de um jeito que não conseguia respirar. Elas abriram a porta, pois não tinha condição psicológica alguma. Lá estava ele, cara fechada e braços cruzados, como sempre. Se não soubesse da situação em que estava metido, aquele poderia ser mais um dia comum. O corpo enrijeceu prevendo a surra que estava prestes a receber e os olhos se fecharam, em parte por pavor, mas também por vergonha. Entretanto, ela nunca veio.

Podia sentir as mãos calejadas pela vida, mas elas não desceram pesadas. Sentia o abismo emocional sendo preenchido, pois ele estava, enfim, perto. O único barulho era do choro sincero que se atropelava com os soluços, como o de uma criança. Pela primeira vez naquela noite, o arrependimento superou todas as outras emoções. Pela primeira vez na minha vida, vi meu pai chorar.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Três anos

Não era para ter acontecido. Todos os momentos que viram o dia nascer e o galo do vizinho cantar deveriam ter sido apenas ilusões. Eram parte de um enorme sonho que vinha em doses homeopáticas. Cada madrugada um pedaço, como em uma novela que deve ser assistida capítulo por capítulo. No meio de todas as tramas, entre tantos personagens e finais possíveis, ninguém podia imaginar. Não era para ter acontecido, mas aconteceu. Estava grato por isso.

Não era para ter se apaixonado. Ela era tudo que não procurava em uma mulher. Tinha suas qualidades, isso era bem verdade, só não as que procurava. Ele era o tipo de homem que ela achava estar vacinada contra. Ele queria ter o mundo inteiro em suas mãos, enquanto ela não queria ninguém aos seus pés. Não tinham as mesmas ideias, não defendiam as mesmas causas e nem tinham os mesmos gostos. Em comum, apenas a certeza de que não queriam se apaixonar um pelo outro. Sabiam que tudo aquilo era efêmero, uma distração no meio do caminho. Desses obstáculos que a vida traz para que a gente não fique entediado. Não era para ter se apaixonado, mas se apaixonou. Também estava grato por isso.

Não era para ter durado. As pessoas não mudam da água pro vinho e por que com eles seria diferente? Eram completamente opostos. Ela a mocinha determinada, ele o anti-herói cafajeste. Brigaram quando ela bateu o pé, faltou pouco para se separarem quando ele quase fraquejou. Fizeram de tudo para viverem o seu felizes para sempre, para descobrir que ele não existe. Pensaram por diversas vezes que estava tudo perdido. Até porque, não era para ter durado e nem durou. Ainda dura.


sábado, 25 de maio de 2013

Despedida - Apenas mais uma de amor (19)

Foi embora sem nem dizer adeus. Era questão de tempo, sabia disso, só não esperava ter sido assim. Nem um último beijo ou abraço, apenas um aceno e um sorriso, e só. Não tinha como adivinhar que ela não voltaria. Confundiu um até logo com um adeus.

Como pudera ser tão cego? Você só pode ter de volta aquilo que um dia foi seu. Estavam juntos, mas não eram um do outro. Por mais que enterrassem sob uma camada de ilusão, a realidade sempre ressurgia. A volta incessante da que não fora. Se deixaram envolver mais do que deveriam, foram além do que imaginaram, e mesmo assim não foram a lugar algum. Deixaram o porto seguro sem puxar a âncora pra dentro do barco. Ficaram onde estavam.

Um sorriso e um aceno. Aquele sorriso. O mesmo que o puxara para o centro do furacão, agora o devolvia para onde havia sido encontrado. Ah, se soubesse, se ao menos não tivesse guardado para si tudo aquilo que pertencia a ela. Todas as alegrias que deixou de provocar, toda raiva que deixou de aplacar, todas as palavras que não disse para não machucar, todas as oportunidades que deixou passar, e tudo isso para que? Ela foi embora do mesmo jeito que entrou, com um aceno e um sorriso. O maldito sorriso.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Mudança

Um menear de cabeça rápido e um sorriso amarelo. Foram amigos durante todo o ensino médio e agora era  apenas isso que restava. Ela havia mudado desde que entrara na faculdade. Nem ligava mais para chamar pra sair. Fizera novos amigos e esquecera dos velhos. Não podia culpá-la, desde o dia que se conheceram ele mesmo mudara bastante. Faz parte. A gente diz que as coisas irão ser para sempre de um jeito, mas não tem como. Todo mundo munda. Seja por necessidade ou pelas vidas que cruzam nossos caminhos. Nada mais seria do jeito que fora um dia. Agora eram praticamente estranhos um ao outro. Restava somente as lembranças.

Lembrou das conversas, das brigas, dos gostos compartilhados. Se soubesse que as coisas chegariam a esse ponto, teria pelo menos agradecido. Parou pra pensar em quantos melhores amigos ou amigas já tivera. Pessoas que não tinha sequer notícias. Uns mudaram de colégio, outros foram embora. Tiveram aqueles que se afastaram aos poucos e os que discutira. Sorriu. Quantas pessoas não o odiavam? Faz parte. Um dia você concorda, mas no outro discorda da pessoa. Mesmo assim, cada uma dessas pessoas era responsável por quem ele era hoje. Não tinha arrependimentos.

Tinha vontade de ir lá, dizer que sentia falta e que as coisas não eram mais as mesmas sem ela, mas não era verdade. A gente acaba aprendendo a viver sem. Continuamos evoluindo, mudando. É assim que as coisas devem ser. Todo estímulo, não importa sua natureza, provoca alterações. As pessoas que entram na nossa vida saem deixando um pedaço de si. Quantos existem dentro de você? Quantos ainda surgirão para adicionar peças a esse quebra cabeça? Pedia apenas para que, ao final, as memórias fossem boas. É, até que mudar não era tão ruim assim.

*
Foi até ela, sorriu e disse:

- Obrigado por ter despertado o escritor em mim.

Foi embora sem olhar para trás.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Chuva

Saiu de casa para espairecer, correr um pouco e esquecer dos problemas. Estava cansado de muita coisa, sentia o peso das decisões nas costas. Um martírio mental diário que já se estendia por semanas. Queria deixar o corpo tomar conhecimento da estafa pela qual sua alma passava. Nos fones de ouvido, deixava tocar apenas aqueles que padeceram dos mesmos sofrimentos. Queria uma mente vazia e um corpo dolorido, umas férias para a cabeça. A segunda música estava prestes a terminar quando sentiu o primeiro pingo lhe tocar a face.

Bastaram as primeiras gotas para seu mundo deixar o modo automático. Agora já sentia o corpo inteiro sendo pinicado pela chuva. A água gelada o despertara do transe de minutos atrás. Enxergava tudo por uma nova ótica. Estava vivo, e sentia isso. Aquele cheirinho de terra molhada o fez lembrar da infância no interior, do falecido pai que brincava com ele nas poças que se formaram. Todos os conselhos que deixara pra ele, tudo agora fazia mais sentido. Os amigos que estavam sempre por perto, o apoio que deram para ele seguir. A chuva que só aumentava parecia dar mais vida aos seus pensamentos. As preocupações que vinham guardadas a sete chaves, de uma por uma foram lavadas e levadas embora.

Eram momentos como esse que o faziam acreditar em Deus. Tudo que o afligia começou a se resolver quase que por mágica. Não conseguiria explicar como escolhera um rumo. Vai ver é esse poder misterioso que a chuva tem de transformar um ser humano num filósofo. Uma capacidade de amplificar os sentimentos. Com ela os pensamentos se tornam mais profundos, dramáticos, e as alegrias se externalizam. Ela que é a chave que destranca a janela da memória. Parou de correr. A janela de casa. Botou a mão na cintura e deu aquela gargalhada de desespero. Esquecera tudo aberto no apartamento. Resolveu um problema e ganhou outro. Mas quem disse que a vida é feita só de solução?

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Apenas mais uma de amor - Sacrifício (18)

Não sabia o que esperar daquela conversa. Recebera a mensagem mais cedo: "precisamos conversar" e nada mais. Há tempos já desconfiava que havia algo de errado com o filho. Ele estava mudando, mas achou que fosse apenas uma fase, coisa que o jovem atual precisa passar pra construir caráter. Entretanto, o que deveria ser chuva passageira permaneceu. Se tivesse tomado as rédeas antes, talvez tivesse evitado chegar nesse ponto. Começava a se preparar para o pior e nada do menino chegar.

Era rigoroso, ele mesmo produto de um regime espartano. Fora moldado pelo pai, até porque, naquela época, não tinha dessas de escolher o que queria ser, muito menos essas firulas de sonhar. Não se tinha desse luxo de fazer o que se gostava, de ser livre para ser do jeito que se era. E foi mais ou menos assim que educou seus filhos. Cada um escolheu uma profissão pra seguir, mas dentro de sua casa eram suas regras. Nada dessas viadagens de tatuagem, cabelo diferente ou piercing, que deixassem essas frescuras pra quando pudessem se sustentar. Amava os filhos, mas isso era pedir demais. Arrancaria o couro dele para servir de exemplo se preciso fosse. Teve seus pensamentos interrompidos pelo filho. Cheguei.

- Filho, nem percebi que você estava por aqui já. - tentou disfarçar enquanto se recompunha.
- Tem algo que preciso dizer e que sei que você não vai gostar muito, mas não dá mais pra viver dessa forma. Você vai ter que aprender a me respeitar do jeito que eu sou. - a casa era dele, ele que sustentava tudo, e ainda teria que engolira vontade dos outros? - Eu sou gay e estou namorando há quatro meses com o filho do seu chefe.

Em todos os seus anos de vida, nunca vira o pai vermelho daquele jeito. A mãe, a primeira a ficar sabendo, foi quem interviu afim de não deixar as coisas chegarem às vias de fato. O pai esbravejou, xingou tudo o que sabia  e mais um pouco. Por que com ele, Deus? Porque não qualquer outro pai naquela cidade? A culpa era da mulher que passava a mão demais na cabeça das crianças. Saiu deixando aquele complô na sala, sem falar nada, e assim permaneceu por quase uma semana.

Não falou com ninguém dentro de casa. Nem na cama, junto da mulher, dormiu. No sexto dia, foi atrás do filho na cozinha porque sabia que não tinha ninguém em casa. Só falaria tudo que estava guardado apenas uma vez, aquela palhaçada tinha que acabar.

- Presta atenção que não vou repetir. Se não quiser concordar, pode se preparar pra arrumar suas malas. Entendido? - o medo era tanto que a única coisa que conseguiu foi balançar a cabeça. - No último Natal, seu irmão trouxe a namorada nova pra gente conhecer, na última Páscoa, sua irmã trouxe o namorado pra celebrar com a gente. Se você um dia sonhar em trazer esse rapaz aqui, ficaremos muito felizes em recebê-lo. - as lágrimas de ambos agora escorrendo.- Antes de ser qualquer outra coisa, você é meu filho, e isso já é razão suficiente para te amar para sempre.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Sete pecados - Avareza

Saiu da faculdade com fome. A última refeição havia sido ao meio-dia e já eram dez da noite. Já tinha ido trabalhar, cansaço, ainda teve que correr para chegar à tempo de apresentar um trabalho, mais cansaço. Vida de merda. Cada vez menos tempo, mais trabalho, e a fome que não parava de crescer. Sabia que não deveria reclamar, mas faz parte da natureza humana. Sempre tem algo faltando, que poderia mudar ou melhorar. Buscamos preencher essa sensação de vazio de toda maneira, talvez reclamar seja uma delas. Ou isso, ou apenas fome mesmo. Resolveu comer um sanduíche antes de ir para casa, um vazio a menos na sua vida.

A primeira atendente foi logo dizendo que não tinha pão de três queijos. Esse era o sinal para que fosse embora, mas a fome era grande. Ficou. Parmesão e orégano no lugar dos três queijos, carne e queijo prato de recheio. Esquenta? Sim, quem é que come sanduíche frio? A segunda atendente alertou sobre a falta de cebola. É, tomate tinha, mas a cebola que tanto gostava estava em falta, bem como a maionese e o cookie tradicional. Teve que se contentar com o que tinha. Vida de merda. Onde estão os direitos humanos na hora que mais precisamos deles? Todo ser humano deve ter direito a um sanduíche digno do seu paladar após um dia cansativo, mas a fome falou mais alto.

Ao sair, escutou uma voz desconhecida e cansada pedir por um trocado. Mal fez questão de olhar. A voz continuou acompanhando-o até o carro. Qualquer ajuda servia, pelo amor de Deus. Não estava ali porque queria, era professor de inglês com quarenta e cinco anos de estudo. Se a situação fosse outra, se o local fosse outro, se a pessoa fosse outra e se ele mesmo não fosse professor de inglês, talvez aquela voz o tivesse convencido. É certo que professor não ganha muito, mas daí a ser morador de rua já é uma outra história. Abriu o carro sem nem ao menos olhar para o ser humano ao seu lado. Não era seu problema, a culpa era do Estado que deixou aquele indivíduo nas condições que se encontrava. A vida é uma merda, mas cada um cuida da sua. Foi quando a voz desistiu que tudo mudou. Com um sotaque de fazer inveja a muito americano, agradeceu pela atenção e disse para dirigir com cuidado. Virou para olhar o homem que estava ao seu lado.

Ali estava a figura de um homem franzino, de pele castigada e voz rouca de locutor de rádio. Sentiu pena, queria ajudá-lo. Por sorte, ele carregava consigo uma quantidade boa de currículos. Foram até a porta da lanchonete pegar um e, lá mesmo, conversaram sobre as desventuras que o levaram até ali. A ida aos Estados Unidos ainda jovem, a família que se desfez, a família que fez por lá, a separação dos pais, o câncer do pai, a vinda para o Brasil, o trabalho num navio, as amizades e os cursos que fez, a mulher que amou e a que o traiu, o azar de ter o seu mundo tomado das suas mãos. Vida de merda, mas não mais a sua, a daquela pessoa à sua frente. O que era comer um sanduíche diferente comparado a não ter o que comer? Ter pouco tempo e muito trabalho com muito tempo e nenhum trabalho? Os seus problemas com os problemas dele? Deixou o dinheiro que tinha trocado, era pouco, porém um começo. Um começo que aquele exemplo de vida não queria aceitar, preferia que ele apenas entregasse o seu currículo.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Coragem - Apenas mais uma de amor (17)

Dava na cara de quem falasse dela, justo ela, moça de família decente. Ainda mais quando vinha da boca de uns e outros que dela falavam, mas não sabiam o que tinham em casa. Dormiam com o inimigo e não sabiam. Umas desavergonhadas, mas que ninguém abria a boca pra falar nada. Isso tudo era inveja de tanta formosura. Deus dera a beleza que deveria ser de todas as moças da redondeza só para ela. Não tinha uma que chegasse aos pés dela, umas desqualificadas que viviam de fazer fuxico pros maridos.

Sempre tinha um pra falar, fosse na mesa do bar, ou na saída da missa. Oras, nenhum deles nem sequer tocara nela, casara virgem e com atestado de pureza dado pelas beatas. Era só porque a danada era bonita por demais, só podia. Um rebanho de mulher feia daquele que só arranjou marido porque os cabras não tinham opção melhor, uns cabras frouxo, cheios de ponta, pulando de cama em cama pra esquecer a miséria que tinham em casa. Qualidadezinha de cidade, viu? Ainda queriam encher a boca pra falar do raio de esperança que atingira aquele fim de mundo, um anjo enviado pra salvar essa terra de mulher feia. Tinha que mandar prender esse povo pra deixarem de ser besta.

Ainda tinham coragem de dizer na cara dele que ela tinha um amante, assim na lata. E como sabiam? Ninguém nunca via nada, ninguém nunca sabia de nada. Sempre a mesma conversa de que suspeitavam de alguma coisa só porque ela andava mais feliz. Ôxe, e ser feliz agora é crime, é? Ele sim que sabia, que estava sempre do lado. Tinha certeza de que ela sempre fora fiel à ele, o único das redondezas que não tinha a cabeça pesada. Se pudesse, levava ela embora, poupava a de tanta calúnia por parte desse povo mulambento. Sua vontade era casar com ela e se mandar dali, mas existe uma grande diferença entre defendê-la da língua afiada daquela gentinha e protegê-la da fúria do coronel quando ele descobrisse que sua mulher fugira com um de seus capangas.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Estado de alerta

Congelou. Era um daqueles momentos que ensaiamos na cabeça diversas vezes. Desses que contamos o que faríamos aos amigos na mesa do bar. Desses que na teoria, todos sabem como reagir, e que somente na hora da prova prática separamos o real do fantasioso, os homens dos meninos. Depois, sobra o arrependimento de não ter feito isso ou aquilo, mas aí já é tarde. A pessoa está longe e você só consegue refazer a situação na sua cabeça, apenas para descobrir que poderia ter sido diferente. Respirou fundo e piscou duas vezes.

A adrenalina tomava conta do corpo inteiro e os músculos enrijeciam preparando-se para a fuga que não poderia realizar. Os instintos animais despertaram ao mesmo tempo, podia escutar o coração bombeando sangue freneticamente. Tinha consciência de tudo ao seu redor, os instintos avisando-o do perigo. O cérebro reconhecia a ameaça iminente. Não adiantaria reagir, não havia nada que pudesse salvá-lo. Ansiedade. O tempo já não mais passava. Calafrio. Converteu-se e fez promessas pra sair dali vivo. Medo. Teve os pensamentos interrompidos enquanto fechava acordo com Santo Expedito:

- Bora, bora! Tá se fazendo de doido, é?
- Hã? - porque nessas horas a gente sempre espera que não tenha sido com a gente.
- Rapaz, to perdendo a paciência com você! - deu lhe um tapa na cara pra que ajeitasse as ideias.- Bora logo! Tá me tirando, é? - outro tapa.- Isso daqui né palhaçada não!
- Calma, calm... - foi interrompido por um terceiro tapa, a bochecha já indicando que ficaria inchada.
- EU TO CALMA! VOCÊ AINDA NÃO VIU NADA! Acabou a gracinha, vou contar até cinco pra você me explicar quem é a vagabunda e porque tem mensagem dela no seu celular.
- Mas...
- UM!

*
Nunca desejou tanto ter seu celular roubado.

terça-feira, 26 de março de 2013

O ídolo

Vivia feito passarinho engaiolado. Passara nove meses preso dentro da mãe, pra sair e passar mais um ano e meio enjaulado dentro de casa. E tinha opção? Mal sabia falar. Com esforço, aprendeu a  informar quando estava com fome ou somente com a fralda suja, sempre caprichando nas duas únicas habilidades que tinha naquele momento. Tirando um ou outro choro, não incomodava muita gente, afinal, não tinha do que reclamar. Nada faltava, tudo que pedia ganhava. Ainda não havia sido apresentado ao capitalismo, não tinha como conhecer nada além daquilo que davam para ele. Até conhecer a televisão.

Foi depois dos desenhos animados e dos comerciais que começou a querer conhecer o mundo, queria encontrar os amiguinhos que via na tevê. De tanto insistir, de tanto condenar, conseguiu o que queria. A mãe sapecou lhe uma roupa e levou pra passear. Pela primeira vez, pôde ver o mundo com seus próprios olhos. Aquilo sim era full HD de verdade. Não conhecia nada, mas mesmo assim gostava do que via. Era toda aquela beleza que estava perdendo preso em casa. De repente, parou.

A mãe olhou pra trás e lá estava ele, parado, olhos fixos e brilhantes. Parecia deslumbrado com alguma coisa. A mãe olhou ao redor e nada. Além deles, algumas outras pessoas passavam correndo, parando apenas em frente de alguma loja que chamasse a atenção. Abaixou-se para descobrir o problema:

- Que foi, meu amor?
- Cê num vai "quiditá"!
- No que, menino?
- Vamo, mãe, rápido.

E partiu ligeiro em direção à uma das lojas, parando apenas perto do rapaz negro que arrumava uma das vitrines.

- Que foi que saiu correndo assim, hein, rapazinho? -o brilho nos olhos agora no rosto inteiro.

Com toda a sua inocência de criança, com toda pureza ainda não corrompida dentro de si, encheu os pulmões de ar e gritou o mais alto que pôde:

- OLHA MÃE, É O SACI-PERERÊ!

*
Dois anos depois, ainda está de castigo sem poder assistir o Sítio do Picapau Amarelo.

terça-feira, 19 de março de 2013

Marido e mulher - Apenas mais uma de amor (16)

Doutor, o senhor não me conhece, mas deve conhecer alguém na mesma situação que a minha. Claro que conhece, todo mundo tem um conhecido que amou a mulher mais do que tudo nesse mundo, deu amor, carinho e presente pra que a danada não fosse embora, e mesmo assim foi traído. Não vou dizer o que eu penso dela pra vossa excelência porque acaba sendo um desrespeito à sua pessoa e até acabo perdendo a razão, mas sei que uma autarquia do seu calibre consegue imaginar.

Pois o senhor veja como são as coisas, eu trabalhando o dia inteiro, dois empregos, tudo pra fazer as vontades da patroa, que não eram poucas, e ela me enchendo de ponta com um cabra que trazia a água e o botijão de gás. Queria matar a sem-vergonha, e o senhor vá me desculpando o palavreado porque a pessoa até se exalta lembrando dessas coisas, porque é mais fácil matar uma mulher dessas do que um macho diferente toda semana. Pelo contrário, assumi a fama de corno e botei ela pra fora de casa sem fazer muito enxame que eu não sou abelha pra tá incomodando os outros com meus problemas. E veja só, doutor, num deu nem dois meses e eu mandei entregar flores e pendurei faixas pra ela saber o quanto eu ainda pensava nela. Agora, pergunte se ela gostou? Num ligou nem pra agradecer, nem pra dizer que não tinha volta, pelo contrário, mandou uma eminência da sua categoria vir aqui prender um trabalhador que só cometeu o crime de amar a mulher errada.

Ela disse que eu tava difamando a pessoa dela aqui no bairro, mas isso é uma calúnia. Doutor, que tem de errado num coitado como eu dizer que pensa na mulher que amou por tanto tempo? Mesmo depois de tanta ponta, mandei pendurar pelo bairro todo uma ruma de faixa dizendo que pensava nela o dia todo, principalmente no trabalho. Eu só queria demonstrar os meus sentimentos verdadeiros pro bairro todo, não precisava nem ela voltar que eu num sô besta de ter ela aqui de volta. Apaixonado sim, mas abestalhado não. Hã? Com o que eu trabalho? Doutor, eu vou ser sincero com o senhor porque até agora eu não disse nenhuma inverdade, de dia eu sou gari e de noite, porteiro de cabaré, mas eu juro pelo amor que tenho por essa carniça, que foi nas melhores das intenções.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Parabéns

Entraram as duas, mãe e filha. Ambas preocupadas, ambas apreensivas. Cumprimentaram o médico e sentaram-se nos seus respectivos assentos, sendo a mais velha apenas a acompanhante. A essa altura, já sabiam de cor e salteado toda a história que começara quatro meses antes no Carnaval, mas contaram mesmo assim, na esperança de que essa fosse a última pessoa a escutá-las.

As duas filhas ficaram doentes. Uma melhorou, a outra não. Mesmo assim, continuou medicando os mesmos remédios. Oras, se foi bom para uma, havia de ser bom para todas. Entretanto, nenhum funcionou. Eram dores, enjoos e náuseas, que iam e vinham sem aviso prévio. Senhora sempre muito religiosa, devota de muitos santos, rezou todas as orações que sabia e nada. Como saúde é coisa séria, não teve jeito se não marcar uma consulta. Foi aí que teve inicio uma bateria interminável de exames.

Verdade seja dita, ninguém sabia o que dizer. Já tinha feito vários exames, mas nada parecia se encaixar no quadro clínico. No exame anterior, achou que descobririam a causa e, mais uma vez, criou esperanças que logo foram destruídas. Fizeram uma tal de pesquisa de bactéria, como se bactéria alguma tivesse tempo para responder questionário. O médico então decidiu pedir uma ultrassonografia abdominal total. O que quer que estivesse ali, teria que aparecer.

Depois de escutar a história, pediu que levantasse a blusa para que ele pudesse espalhar o carbogel. Começou o exame sem saber ao certo onde procurar, mas estava procurando uma agulha no palheiro. Resolveu buscar mais informações:

- Desculpe a pergunta, mas a senhorita tem uma vida sexual ativa? - perguntou sem nem tirar os olhos da tela.
- Como? - entendera a pergunta, mas não queria acreditar que ela estava sendo feito. Pode ver sua mãe empertigar-se na cadeira pelo canto do olho.
- Vida sexual, a senhorita tem? - já nem piscava de tanta atenção que prestava.
- Não. 
- É virgem ainda? - a indiferença agora transparecendo.
- Com certeza.
- Ela é religiosa como eu, doutor.
- Sei, sei.

Continuou olhando por mais alguns instantes e sorriu. Tirou os óculos e prosseguiu:

- A senhora tem filhos?
- Não, apenas duas meninas, essa e a outra que tava doente.
- E netos?
- Não.
- Parabéns, o primeiro tá aí, tem quatro meses e é um menino. 

*
Depois ficou pensando se não teria sido mais engraçado dizer que era o novo messias.

domingo, 10 de março de 2013

Retorno

Tanto tempo se passara desde aquele dia em que a deixara sentada na cama chorando, que não sabia nem se ainda estaria lá. Acreditava que já teria trocado a fechadura, mas sentiu a chave girar na primeira tentativa. Hesitou. Ficou ali parado por alguns instantes. Não sabia como entrar ou como seria recebido. Deveria ter pensado bastante no que diria, escolher as palavras certas, talvez até levar um presente. Agora estava ali parado e não conseguia nem decidir se girava a maçaneta ou a chave. Provavelmente seria a última chance que teria para voltar para casa. Só não estava completamente certo de que era isso que queria fazer.

Desde que saíra de casa para encontrar o rumo que sua vida outrora perdera, fez promessas vazias de que logo voltaria, mesmo sabendo o quão difícil seria voltar após dar o primeiro passo para o desconhecido. A verdade era que gostava do conforto que elas traziam. Cada passo dado significa um passo mais distante dela, um abismo que talvez jamais pudesse ser fechado. Ao menos era assim que pensava, não imaginava que nunca havia sido abandonado por ela. 

Tanta coisa para dizer, coisas que apenas ela entenderia, e mesmo assim, não conseguia se mover. Imaginava a reação dela ao ver o quanto ele havia mudado nesse tempo, o quanto ele amadurecera. Não sabia se ela o aceitaria, mesmo implorando. Deus! Talvez ela nem o reconhecesse mais! Teve seus devaneios interrompidos pelo clique da porta:

- Não vai entrar? -simples, direto e sorridente.
- É...é...équetantacoisaaconteceue...
- Eu sei. Por que você não entra e a gente toma uma taça de vinho enquanto você me conta tudo que aconteceu? -como vivera sem ela todo esse tempo?-. Entra, estava te esperando.

*
Como é bom entrar em casa e perceber que nada mudou. Todas as minhas ideias ainda no mesmo lugar, protegidas da ação do tempo e do envelhecimento. Sei que muitas foram as vezes que prometi voltar a escrever e deixei a ideia morrer no pensamento. Que dessa vez não hajam promessas, apenas a certeza de que preciso escrever para me sentir vivo, tanto quanto as minhas crônicas precisam de mim para viver.