quinta-feira, 28 de março de 2013

Estado de alerta

Congelou. Era um daqueles momentos que ensaiamos na cabeça diversas vezes. Desses que contamos o que faríamos aos amigos na mesa do bar. Desses que na teoria, todos sabem como reagir, e que somente na hora da prova prática separamos o real do fantasioso, os homens dos meninos. Depois, sobra o arrependimento de não ter feito isso ou aquilo, mas aí já é tarde. A pessoa está longe e você só consegue refazer a situação na sua cabeça, apenas para descobrir que poderia ter sido diferente. Respirou fundo e piscou duas vezes.

A adrenalina tomava conta do corpo inteiro e os músculos enrijeciam preparando-se para a fuga que não poderia realizar. Os instintos animais despertaram ao mesmo tempo, podia escutar o coração bombeando sangue freneticamente. Tinha consciência de tudo ao seu redor, os instintos avisando-o do perigo. O cérebro reconhecia a ameaça iminente. Não adiantaria reagir, não havia nada que pudesse salvá-lo. Ansiedade. O tempo já não mais passava. Calafrio. Converteu-se e fez promessas pra sair dali vivo. Medo. Teve os pensamentos interrompidos enquanto fechava acordo com Santo Expedito:

- Bora, bora! Tá se fazendo de doido, é?
- Hã? - porque nessas horas a gente sempre espera que não tenha sido com a gente.
- Rapaz, to perdendo a paciência com você! - deu lhe um tapa na cara pra que ajeitasse as ideias.- Bora logo! Tá me tirando, é? - outro tapa.- Isso daqui né palhaçada não!
- Calma, calm... - foi interrompido por um terceiro tapa, a bochecha já indicando que ficaria inchada.
- EU TO CALMA! VOCÊ AINDA NÃO VIU NADA! Acabou a gracinha, vou contar até cinco pra você me explicar quem é a vagabunda e porque tem mensagem dela no seu celular.
- Mas...
- UM!

*
Nunca desejou tanto ter seu celular roubado.

terça-feira, 26 de março de 2013

O ídolo

Vivia feito passarinho engaiolado. Passara nove meses preso dentro da mãe, pra sair e passar mais um ano e meio enjaulado dentro de casa. E tinha opção? Mal sabia falar. Com esforço, aprendeu a  informar quando estava com fome ou somente com a fralda suja, sempre caprichando nas duas únicas habilidades que tinha naquele momento. Tirando um ou outro choro, não incomodava muita gente, afinal, não tinha do que reclamar. Nada faltava, tudo que pedia ganhava. Ainda não havia sido apresentado ao capitalismo, não tinha como conhecer nada além daquilo que davam para ele. Até conhecer a televisão.

Foi depois dos desenhos animados e dos comerciais que começou a querer conhecer o mundo, queria encontrar os amiguinhos que via na tevê. De tanto insistir, de tanto condenar, conseguiu o que queria. A mãe sapecou lhe uma roupa e levou pra passear. Pela primeira vez, pôde ver o mundo com seus próprios olhos. Aquilo sim era full HD de verdade. Não conhecia nada, mas mesmo assim gostava do que via. Era toda aquela beleza que estava perdendo preso em casa. De repente, parou.

A mãe olhou pra trás e lá estava ele, parado, olhos fixos e brilhantes. Parecia deslumbrado com alguma coisa. A mãe olhou ao redor e nada. Além deles, algumas outras pessoas passavam correndo, parando apenas em frente de alguma loja que chamasse a atenção. Abaixou-se para descobrir o problema:

- Que foi, meu amor?
- Cê num vai "quiditá"!
- No que, menino?
- Vamo, mãe, rápido.

E partiu ligeiro em direção à uma das lojas, parando apenas perto do rapaz negro que arrumava uma das vitrines.

- Que foi que saiu correndo assim, hein, rapazinho? -o brilho nos olhos agora no rosto inteiro.

Com toda a sua inocência de criança, com toda pureza ainda não corrompida dentro de si, encheu os pulmões de ar e gritou o mais alto que pôde:

- OLHA MÃE, É O SACI-PERERÊ!

*
Dois anos depois, ainda está de castigo sem poder assistir o Sítio do Picapau Amarelo.

terça-feira, 19 de março de 2013

Marido e mulher - Apenas mais uma de amor (16)

Doutor, o senhor não me conhece, mas deve conhecer alguém na mesma situação que a minha. Claro que conhece, todo mundo tem um conhecido que amou a mulher mais do que tudo nesse mundo, deu amor, carinho e presente pra que a danada não fosse embora, e mesmo assim foi traído. Não vou dizer o que eu penso dela pra vossa excelência porque acaba sendo um desrespeito à sua pessoa e até acabo perdendo a razão, mas sei que uma autarquia do seu calibre consegue imaginar.

Pois o senhor veja como são as coisas, eu trabalhando o dia inteiro, dois empregos, tudo pra fazer as vontades da patroa, que não eram poucas, e ela me enchendo de ponta com um cabra que trazia a água e o botijão de gás. Queria matar a sem-vergonha, e o senhor vá me desculpando o palavreado porque a pessoa até se exalta lembrando dessas coisas, porque é mais fácil matar uma mulher dessas do que um macho diferente toda semana. Pelo contrário, assumi a fama de corno e botei ela pra fora de casa sem fazer muito enxame que eu não sou abelha pra tá incomodando os outros com meus problemas. E veja só, doutor, num deu nem dois meses e eu mandei entregar flores e pendurei faixas pra ela saber o quanto eu ainda pensava nela. Agora, pergunte se ela gostou? Num ligou nem pra agradecer, nem pra dizer que não tinha volta, pelo contrário, mandou uma eminência da sua categoria vir aqui prender um trabalhador que só cometeu o crime de amar a mulher errada.

Ela disse que eu tava difamando a pessoa dela aqui no bairro, mas isso é uma calúnia. Doutor, que tem de errado num coitado como eu dizer que pensa na mulher que amou por tanto tempo? Mesmo depois de tanta ponta, mandei pendurar pelo bairro todo uma ruma de faixa dizendo que pensava nela o dia todo, principalmente no trabalho. Eu só queria demonstrar os meus sentimentos verdadeiros pro bairro todo, não precisava nem ela voltar que eu num sô besta de ter ela aqui de volta. Apaixonado sim, mas abestalhado não. Hã? Com o que eu trabalho? Doutor, eu vou ser sincero com o senhor porque até agora eu não disse nenhuma inverdade, de dia eu sou gari e de noite, porteiro de cabaré, mas eu juro pelo amor que tenho por essa carniça, que foi nas melhores das intenções.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Parabéns

Entraram as duas, mãe e filha. Ambas preocupadas, ambas apreensivas. Cumprimentaram o médico e sentaram-se nos seus respectivos assentos, sendo a mais velha apenas a acompanhante. A essa altura, já sabiam de cor e salteado toda a história que começara quatro meses antes no Carnaval, mas contaram mesmo assim, na esperança de que essa fosse a última pessoa a escutá-las.

As duas filhas ficaram doentes. Uma melhorou, a outra não. Mesmo assim, continuou medicando os mesmos remédios. Oras, se foi bom para uma, havia de ser bom para todas. Entretanto, nenhum funcionou. Eram dores, enjoos e náuseas, que iam e vinham sem aviso prévio. Senhora sempre muito religiosa, devota de muitos santos, rezou todas as orações que sabia e nada. Como saúde é coisa séria, não teve jeito se não marcar uma consulta. Foi aí que teve inicio uma bateria interminável de exames.

Verdade seja dita, ninguém sabia o que dizer. Já tinha feito vários exames, mas nada parecia se encaixar no quadro clínico. No exame anterior, achou que descobririam a causa e, mais uma vez, criou esperanças que logo foram destruídas. Fizeram uma tal de pesquisa de bactéria, como se bactéria alguma tivesse tempo para responder questionário. O médico então decidiu pedir uma ultrassonografia abdominal total. O que quer que estivesse ali, teria que aparecer.

Depois de escutar a história, pediu que levantasse a blusa para que ele pudesse espalhar o carbogel. Começou o exame sem saber ao certo onde procurar, mas estava procurando uma agulha no palheiro. Resolveu buscar mais informações:

- Desculpe a pergunta, mas a senhorita tem uma vida sexual ativa? - perguntou sem nem tirar os olhos da tela.
- Como? - entendera a pergunta, mas não queria acreditar que ela estava sendo feito. Pode ver sua mãe empertigar-se na cadeira pelo canto do olho.
- Vida sexual, a senhorita tem? - já nem piscava de tanta atenção que prestava.
- Não. 
- É virgem ainda? - a indiferença agora transparecendo.
- Com certeza.
- Ela é religiosa como eu, doutor.
- Sei, sei.

Continuou olhando por mais alguns instantes e sorriu. Tirou os óculos e prosseguiu:

- A senhora tem filhos?
- Não, apenas duas meninas, essa e a outra que tava doente.
- E netos?
- Não.
- Parabéns, o primeiro tá aí, tem quatro meses e é um menino. 

*
Depois ficou pensando se não teria sido mais engraçado dizer que era o novo messias.

domingo, 10 de março de 2013

Retorno

Tanto tempo se passara desde aquele dia em que a deixara sentada na cama chorando, que não sabia nem se ainda estaria lá. Acreditava que já teria trocado a fechadura, mas sentiu a chave girar na primeira tentativa. Hesitou. Ficou ali parado por alguns instantes. Não sabia como entrar ou como seria recebido. Deveria ter pensado bastante no que diria, escolher as palavras certas, talvez até levar um presente. Agora estava ali parado e não conseguia nem decidir se girava a maçaneta ou a chave. Provavelmente seria a última chance que teria para voltar para casa. Só não estava completamente certo de que era isso que queria fazer.

Desde que saíra de casa para encontrar o rumo que sua vida outrora perdera, fez promessas vazias de que logo voltaria, mesmo sabendo o quão difícil seria voltar após dar o primeiro passo para o desconhecido. A verdade era que gostava do conforto que elas traziam. Cada passo dado significa um passo mais distante dela, um abismo que talvez jamais pudesse ser fechado. Ao menos era assim que pensava, não imaginava que nunca havia sido abandonado por ela. 

Tanta coisa para dizer, coisas que apenas ela entenderia, e mesmo assim, não conseguia se mover. Imaginava a reação dela ao ver o quanto ele havia mudado nesse tempo, o quanto ele amadurecera. Não sabia se ela o aceitaria, mesmo implorando. Deus! Talvez ela nem o reconhecesse mais! Teve seus devaneios interrompidos pelo clique da porta:

- Não vai entrar? -simples, direto e sorridente.
- É...é...équetantacoisaaconteceue...
- Eu sei. Por que você não entra e a gente toma uma taça de vinho enquanto você me conta tudo que aconteceu? -como vivera sem ela todo esse tempo?-. Entra, estava te esperando.

*
Como é bom entrar em casa e perceber que nada mudou. Todas as minhas ideias ainda no mesmo lugar, protegidas da ação do tempo e do envelhecimento. Sei que muitas foram as vezes que prometi voltar a escrever e deixei a ideia morrer no pensamento. Que dessa vez não hajam promessas, apenas a certeza de que preciso escrever para me sentir vivo, tanto quanto as minhas crônicas precisam de mim para viver.