sábado, 10 de maio de 2014

Minha mãe é uma peça

Minha mãe não xingava, nunca bebia, reclamava o tempo inteiro da bagunça no quarto, achava errado que a gente fosse pra aniversário de 15 anos sem ser convidado e ainda por cima sem nem levar presente. Entretanto, como diz o ditado, se não pode vencê-los, junte-se a eles. Hoje o motorista que entra sem dar sinal é filho da puta, uma taça de vinho já deixa ela doida, quem quiser viver num chiqueiro que viva e é pra levar o meu irmão pra festa junto comigo que ninguém vai se incomodar.

Ela é o motivo pelo qual não tenho saudade da comida de casa porque até água ela queima. Quando era mais novo achava que o meu pai não era romântico por sempre comprar jogos de panela no dia das mães, mas hoje sei que as panelas precisavam ser trocadas sempre que ela resolvia cozinhar. Meus amigos ficavam felizes nas datas comemorativas porque a mãe deles cozinhava só coisa boa. Eu ficava feliz porque a gente pedia comida. Pior ainda era quando ela "aprendia" uma receita nova e experimentava na gente, lá se ia o dia inteiro de só-sai-daí-quando-comer-tudo. Mesmo assim, não troco o cuscuz da velhota por nada.

Acredito que a minha ingratidão tenha começado já quando eu disse as minhas primeiras palavras: papá. Depois de 9 meses, mais o tempo de amamentação, tantos cuidados pro infeliz chamar pelo pai que estava sempre trabalhando. Por um outro lado, bastava ela chegar cansada, claro, que eu ia atrás com um livro para que ela lesse a mesma história pela décima quinta vez. Naquele dia. Até que ela comprou livros novos.

Sem sombra de dúvidas ela é a pessoa que mais me ama nesse mundo. Sempre fiz o que quis e ela me apoiou em tudo sem questionar. Mesmo nas várias vezes em que eu pedi para que ela fechasse as janelas do carro ligeiro e logo depois peidei, ela deixou de confiar em mim. Nem quando me escondia na dispensa e gritava pra ela aparecer na cozinha só pra ver se o coração dela estava funcionando bem, ela quis me deserdar.

Diferente da maioria das pessoas que têm na mãe a melhor amiga, eu não tenho. Entretanto, ela me conhece melhor do que ninguém. Ela finge que acredita e eu finjo que engano. Nada passa despercebido. Eu achava que era sortudo por ela sempre chegar em casa fazendo barulho porque dava tempo de me vestir, sendo que ela pagava o meu irmão pra entrar batendo a bola no chão e não ver nada.

As pessoas têm a concepção de que ter a mãe médica é a melhor coisa do mundo porque ela cuida de você e ainda te dá atestados. Se vocês encontrarem uma assim, favor entrar em contato pra fazer a troca porque lá em casa o buraco é mais embaixo. A gente não faltava aula. Se tinha força pra ir até o quarto dela pedir remédio, também tinha pra ir pra escola. Eu perdi prova na faculdade porque tava com uma diarreia de lascar o ser em dois e ela me mandou ficar e tomar muito líquido, mas na hora que eu pedi um atestado ela disse que só dava atestado aos pacientes que iam ao consultório.

Acho que só tem um pessoal que ama mais a minha mãe que a própria família, os funcionários da SMTT. Ela é a maior contribuinte e pelos motivos mais absurdos. É como se todo o cuidado e atenção ficassem no consultório com ela. Só ela consegue tomar multas pelo mesmo motivo e no mesmo local. Ainda tem a cara de pau de dizer que a multa é pra mim.

Mãe

Olhava quietinha ele dormir. Prendia a respiração com medo de acordá-lo, mesmo sabendo que era o mesmo sono pesado do pai. Os pequenos olhinhos fechados tranquilizavam. Custava a sair para trabalhar. O tempo tentaria transformá-lo, levá-lo para longe, pois que tentasse, protegeria o seu bebê. De tudo. As memórias começaram a emergir.

Nasceu mirrado antes do previsto, cabia na mão do pai. Era só pelanca. Tão feinho que mais parecia um ratinho pelado, mas não importava. Lá estava ele, o primogênito. Tinha planos para ele que agora eram frustrados pela quantidade de complicações. Aquele diminuto pedaço de gente dependia de alguém. Nada nesse mundo o tiraria de perto . Nada o machucaria.

Dava-lhe banho com água mineral para que não ficasse doente. O leite de cabra porque não podia com o de vaca. Longe do pai que não tinha juízo e o levava ao curral para ver os bichos. Noites em claro por conta das crises de asma. Ele cresceria forte, tinha essa certeza. Queria vê-lo ir aonde jamais sequer sonhara chegar. Queria vê-lo descobrir a cura para uma doença rara ou levar  paz ao Oriente Médio. O ajudaria no que fosse preciso.

- Que foi, mãe? - a voz embriagada de sono.
- Oh, filho, nada não. - se assustara mais do que deveria.- Já arrumou a mala?
- Depois, depois - já puxando a colcha pra cima e virando para o outro lado. -, num já falei que vou arrumar? Relaxe o bigode que vai dar tudo certo.
- Mas Dieguinho, meu filho, pelo amor de Deus, Dieguinho, ói sei não, viu? - desconversou ainda meio deslocada.- Você que vai viajar mesmo. Sei não, sei não. 

As lembranças tanto cobriram seus olhos que achava que iria ouví-lo acordar chorando. O seu bebê, o bebezinho da mãe, crescera e estava prestes a conquistar o que era seu por direito. Não poderia mais cuidar dele e teria que se conformar. Filho é assim mesmo, a gente cria pro mundo. 

Voltou ao quarto para confirmar e lá estava o sapequinha babando no travesseiro.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

História de Ninguém

Quem sou eu já não importa, nem o quando e nem o onde. O que importa é que não tenho mais identidade. Mera mazela social a ser julgada. Um mito criado ao meu redor. Fui julgado um qualquer, um desajustado, apenas mais um rebelde sem causa.

Sou um número. Apenas uma sequência pela qual todos me reconhecem, exceto eu. Como se não bastasse a minha identidade, tiraram também o meu direito de lutar. Não há direito de resistência. Não posso aceitar. Não, não. Exército parapopular que espera pra ser réu, julgado, culpado. Não, não. Munidos do verbo, apenas. Frágeis problemas.

Filho da Sociedade
(Na verdade criado por Ninguém. Porcos capitalistas.)
E retorna o filho pródigo, mas sua Mãe não o aceita de volta,
(Discórdia)
acha que sou apenas um “Meu Guri” à espera do destino. Um destino comum a todos,
(Mentira.)
a todos os filhos pródigos,
(Desgraçada, pede que volte, mas não aceita.)
(Tolo.)
Destino o qual ela mesma me preparou. Sem direito a mudanças ou escolhas. Apenas esperando meu fim, triste fim.
(Carrasca, amaldiçoo a ti e a teus filhos. Acabarás como o início.)