quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Tatuagem

Veio ao mundo para pagar pelos seus pecados e estava conformada . Poderia ter chamado tudo aquilo que enfrentou de carma, mas seria apenas um eufemismo. Pensara assim quando era mais nova, que a culpa era dela e que deveria sofrer por ser uma filha ruim. Apanhava porque era isso que merecia, todos os dias. Além disso, preferia ser espancada sem motivos a acreditar que a mãe não tinha capacidade ou condições para criá-la. Esse era o inferno dantesco no qual veio nascer. Apenas quando viu a morte beijar a mãe nos lábios pela última vez, venceu seus demônios.

Viu sua mãe se matar aos poucos durante os seis anos que ficaram juntas. Muitas vezes com a sua ajuda. O prêmio de melhor filha do mundo era dela, quando obedecia e saía para comprar droga, mas dormia com manchas pelo corpo quando brincava na rua até mais tarde. Entretanto, mesmo na sua dicotomia, tinham seus caprichos juntas. Mesmo assim, não foi o suficiente. Era muita dor para pouco sorriso, muita regra para pouco exemplo. Quando ela deu o último suspiro, chorou por ter ficado feliz.

Venceu a roda do destino e contrariou Sartre. Rolou para longe da árvore para mostrar ao mundo que é possível ter um começo difícil e ser diferente. É fato que sentia sim a necessidade de ser protegida, mas não queria por compaixão. Não precisou da piedade de ninguém antes e não seria agora que iria implorar por cuidados. Tornou-se tenaz porque a vida assim a fez e ensinou a ser. Venceria o que quer que fosse.

*

Ali sentada, esperava para tatuar na pele aquilo que a vida já tatuara na carne: 

Veni.
Vidi.
Vici.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

E o salário ó - Jaca

Engana-se quem pensa que dar aula de inglês para níveis avançados é mais difícil. Os níveis básicos são um campo minado cheio de pegadinhas prontas para explodir ao sinal de qualquer movimento brusco. Como toda pessoa que começa algo novo, você não sabe de nada, portanto, o que aparecer já será novidade. Justamente por isso, a moeda mostra os seus dois lados. Ao mesmo tempo que o aluno iniciante se interessa por tudo, eles têm maior sede de conhecimento. E aí, meus caros, não há preparação no mundo que te deixe pronto para o que poderá aparecer. Em algum momento surgirá uma pergunta para a qual você não tem a resposta e aí resta apenas um conselho: se conforme e assuma.

 Apesar do pouco tempo, já era uma turma querida. Era apenas a quinta ou sexta aula que dava para aquela turma, mas já tinha a sensação de estar em casa. O grupo era novo, nível iniciante. Ainda davam os primeiros passos com o inglês, e é justamente aí onde morava o perigo. Percebi tarde demais.

É certo que aluno não é raça de gente e sente um prazer inexplicável em apertar sem abraçar. Também sou aluno e sinto a mesma coisa. Quando o aluno já começa a pergunta rindo, das duas uma, ou é safadeza ou ele acha que você não sabe, tudo só para ter o gosto de rir internamente. Já tive professor que inventou a resposta na hora e só descobri anos mais tarde. Entretanto, dessa vez o erro foi meu.

 O vocabulário da lição trazia algumas frutas,não muitas, as principais. Quando terminei de ensiná-las, avisei que não sabia todas as frutas, mas que eles poderiam perguntar mesmo assim. Uma a uma, respondi cada pergunta deles, até que perguntaram:

- E jaca? - o sorriso largo estampado.

Depois de uma boa gargalhada de desespero, olhei para o aluno e disse que não sabia, mas que iria procurar. Fiquei com aquilo na cabeça e a primeira coisa que fiz quando cheguei em casa foi achar a resposta. Uma semana depois, lá estávamos nós, eu com a resposta na ponta da minha língua e ele com a pergunta na ponta da dele:

- E aí, professor? Achou? - aquele mesmo sorriso que eu esperava apagar.
- Claro! Você acha que eu ia deixar de responder? Jaca é jack fruit. - quem estava rindo agora?
- Mas essa daí é mole ou dura? - o sorriso sem nem mais caber no rosto.

O pior é que pra essa eu tinha a resposta.

sábado, 10 de agosto de 2013

Fuga

O pensamento ia longe enquanto olhava a escuridão pela janela do carro. Escutava as vozes chorosas, mas tentava não prestar muita atenção. Não era com elas que deveria estar preocupado. Pensava no que estava esperando quando chegasse em casa. Era o motivo pelo qual elas choravam e não escaparia facilmente. Não dessa. Não daria tempo nem pra dizer que poderia explicar e que estava tudo bem, ele viria implacável para cima. Nunca apanhara, mas sempre há uma primeira vez.

Há muito tempo as coisas já não estavam bem. Tudo ruía ao redor, mas não quis pedir ajuda. Era adolescente, e adolescente tem dessas ideias mesmo de fugir de casa. Todos imaginaram como seria, arquitetaram um plano, mas poucos tiveram a coragem, pra não dizer estupidez, de sair de casa sem rumo ou dinheiro no bolso. Agora que estava ali sentado, alheio às lágrimas que davam lugar aos sorrisos e novamente viravam lágrimas, pensava no tamanho da idiotice que tinha feito. Seria uma surra Homérica, literalmente.

O tempo parecia se esticar à medida que caminhava em direção à porta. Um insight perpassou a mente naquele momento, era assim que se sentia um condenado à morte. A chave girou duas vezes na porta e o coração três no peito. O medo inundou os pulmões de um jeito que não conseguia respirar. Elas abriram a porta, pois não tinha condição psicológica alguma. Lá estava ele, cara fechada e braços cruzados, como sempre. Se não soubesse da situação em que estava metido, aquele poderia ser mais um dia comum. O corpo enrijeceu prevendo a surra que estava prestes a receber e os olhos se fecharam, em parte por pavor, mas também por vergonha. Entretanto, ela nunca veio.

Podia sentir as mãos calejadas pela vida, mas elas não desceram pesadas. Sentia o abismo emocional sendo preenchido, pois ele estava, enfim, perto. O único barulho era do choro sincero que se atropelava com os soluços, como o de uma criança. Pela primeira vez naquela noite, o arrependimento superou todas as outras emoções. Pela primeira vez na minha vida, vi meu pai chorar.