quarta-feira, 24 de abril de 2013

Apenas mais uma de amor - Sacrifício (18)

Não sabia o que esperar daquela conversa. Recebera a mensagem mais cedo: "precisamos conversar" e nada mais. Há tempos já desconfiava que havia algo de errado com o filho. Ele estava mudando, mas achou que fosse apenas uma fase, coisa que o jovem atual precisa passar pra construir caráter. Entretanto, o que deveria ser chuva passageira permaneceu. Se tivesse tomado as rédeas antes, talvez tivesse evitado chegar nesse ponto. Começava a se preparar para o pior e nada do menino chegar.

Era rigoroso, ele mesmo produto de um regime espartano. Fora moldado pelo pai, até porque, naquela época, não tinha dessas de escolher o que queria ser, muito menos essas firulas de sonhar. Não se tinha desse luxo de fazer o que se gostava, de ser livre para ser do jeito que se era. E foi mais ou menos assim que educou seus filhos. Cada um escolheu uma profissão pra seguir, mas dentro de sua casa eram suas regras. Nada dessas viadagens de tatuagem, cabelo diferente ou piercing, que deixassem essas frescuras pra quando pudessem se sustentar. Amava os filhos, mas isso era pedir demais. Arrancaria o couro dele para servir de exemplo se preciso fosse. Teve seus pensamentos interrompidos pelo filho. Cheguei.

- Filho, nem percebi que você estava por aqui já. - tentou disfarçar enquanto se recompunha.
- Tem algo que preciso dizer e que sei que você não vai gostar muito, mas não dá mais pra viver dessa forma. Você vai ter que aprender a me respeitar do jeito que eu sou. - a casa era dele, ele que sustentava tudo, e ainda teria que engolira vontade dos outros? - Eu sou gay e estou namorando há quatro meses com o filho do seu chefe.

Em todos os seus anos de vida, nunca vira o pai vermelho daquele jeito. A mãe, a primeira a ficar sabendo, foi quem interviu afim de não deixar as coisas chegarem às vias de fato. O pai esbravejou, xingou tudo o que sabia  e mais um pouco. Por que com ele, Deus? Porque não qualquer outro pai naquela cidade? A culpa era da mulher que passava a mão demais na cabeça das crianças. Saiu deixando aquele complô na sala, sem falar nada, e assim permaneceu por quase uma semana.

Não falou com ninguém dentro de casa. Nem na cama, junto da mulher, dormiu. No sexto dia, foi atrás do filho na cozinha porque sabia que não tinha ninguém em casa. Só falaria tudo que estava guardado apenas uma vez, aquela palhaçada tinha que acabar.

- Presta atenção que não vou repetir. Se não quiser concordar, pode se preparar pra arrumar suas malas. Entendido? - o medo era tanto que a única coisa que conseguiu foi balançar a cabeça. - No último Natal, seu irmão trouxe a namorada nova pra gente conhecer, na última Páscoa, sua irmã trouxe o namorado pra celebrar com a gente. Se você um dia sonhar em trazer esse rapaz aqui, ficaremos muito felizes em recebê-lo. - as lágrimas de ambos agora escorrendo.- Antes de ser qualquer outra coisa, você é meu filho, e isso já é razão suficiente para te amar para sempre.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Sete pecados - Avareza

Saiu da faculdade com fome. A última refeição havia sido ao meio-dia e já eram dez da noite. Já tinha ido trabalhar, cansaço, ainda teve que correr para chegar à tempo de apresentar um trabalho, mais cansaço. Vida de merda. Cada vez menos tempo, mais trabalho, e a fome que não parava de crescer. Sabia que não deveria reclamar, mas faz parte da natureza humana. Sempre tem algo faltando, que poderia mudar ou melhorar. Buscamos preencher essa sensação de vazio de toda maneira, talvez reclamar seja uma delas. Ou isso, ou apenas fome mesmo. Resolveu comer um sanduíche antes de ir para casa, um vazio a menos na sua vida.

A primeira atendente foi logo dizendo que não tinha pão de três queijos. Esse era o sinal para que fosse embora, mas a fome era grande. Ficou. Parmesão e orégano no lugar dos três queijos, carne e queijo prato de recheio. Esquenta? Sim, quem é que come sanduíche frio? A segunda atendente alertou sobre a falta de cebola. É, tomate tinha, mas a cebola que tanto gostava estava em falta, bem como a maionese e o cookie tradicional. Teve que se contentar com o que tinha. Vida de merda. Onde estão os direitos humanos na hora que mais precisamos deles? Todo ser humano deve ter direito a um sanduíche digno do seu paladar após um dia cansativo, mas a fome falou mais alto.

Ao sair, escutou uma voz desconhecida e cansada pedir por um trocado. Mal fez questão de olhar. A voz continuou acompanhando-o até o carro. Qualquer ajuda servia, pelo amor de Deus. Não estava ali porque queria, era professor de inglês com quarenta e cinco anos de estudo. Se a situação fosse outra, se o local fosse outro, se a pessoa fosse outra e se ele mesmo não fosse professor de inglês, talvez aquela voz o tivesse convencido. É certo que professor não ganha muito, mas daí a ser morador de rua já é uma outra história. Abriu o carro sem nem ao menos olhar para o ser humano ao seu lado. Não era seu problema, a culpa era do Estado que deixou aquele indivíduo nas condições que se encontrava. A vida é uma merda, mas cada um cuida da sua. Foi quando a voz desistiu que tudo mudou. Com um sotaque de fazer inveja a muito americano, agradeceu pela atenção e disse para dirigir com cuidado. Virou para olhar o homem que estava ao seu lado.

Ali estava a figura de um homem franzino, de pele castigada e voz rouca de locutor de rádio. Sentiu pena, queria ajudá-lo. Por sorte, ele carregava consigo uma quantidade boa de currículos. Foram até a porta da lanchonete pegar um e, lá mesmo, conversaram sobre as desventuras que o levaram até ali. A ida aos Estados Unidos ainda jovem, a família que se desfez, a família que fez por lá, a separação dos pais, o câncer do pai, a vinda para o Brasil, o trabalho num navio, as amizades e os cursos que fez, a mulher que amou e a que o traiu, o azar de ter o seu mundo tomado das suas mãos. Vida de merda, mas não mais a sua, a daquela pessoa à sua frente. O que era comer um sanduíche diferente comparado a não ter o que comer? Ter pouco tempo e muito trabalho com muito tempo e nenhum trabalho? Os seus problemas com os problemas dele? Deixou o dinheiro que tinha trocado, era pouco, porém um começo. Um começo que aquele exemplo de vida não queria aceitar, preferia que ele apenas entregasse o seu currículo.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Coragem - Apenas mais uma de amor (17)

Dava na cara de quem falasse dela, justo ela, moça de família decente. Ainda mais quando vinha da boca de uns e outros que dela falavam, mas não sabiam o que tinham em casa. Dormiam com o inimigo e não sabiam. Umas desavergonhadas, mas que ninguém abria a boca pra falar nada. Isso tudo era inveja de tanta formosura. Deus dera a beleza que deveria ser de todas as moças da redondeza só para ela. Não tinha uma que chegasse aos pés dela, umas desqualificadas que viviam de fazer fuxico pros maridos.

Sempre tinha um pra falar, fosse na mesa do bar, ou na saída da missa. Oras, nenhum deles nem sequer tocara nela, casara virgem e com atestado de pureza dado pelas beatas. Era só porque a danada era bonita por demais, só podia. Um rebanho de mulher feia daquele que só arranjou marido porque os cabras não tinham opção melhor, uns cabras frouxo, cheios de ponta, pulando de cama em cama pra esquecer a miséria que tinham em casa. Qualidadezinha de cidade, viu? Ainda queriam encher a boca pra falar do raio de esperança que atingira aquele fim de mundo, um anjo enviado pra salvar essa terra de mulher feia. Tinha que mandar prender esse povo pra deixarem de ser besta.

Ainda tinham coragem de dizer na cara dele que ela tinha um amante, assim na lata. E como sabiam? Ninguém nunca via nada, ninguém nunca sabia de nada. Sempre a mesma conversa de que suspeitavam de alguma coisa só porque ela andava mais feliz. Ôxe, e ser feliz agora é crime, é? Ele sim que sabia, que estava sempre do lado. Tinha certeza de que ela sempre fora fiel à ele, o único das redondezas que não tinha a cabeça pesada. Se pudesse, levava ela embora, poupava a de tanta calúnia por parte desse povo mulambento. Sua vontade era casar com ela e se mandar dali, mas existe uma grande diferença entre defendê-la da língua afiada daquela gentinha e protegê-la da fúria do coronel quando ele descobrisse que sua mulher fugira com um de seus capangas.